quarta-feira, maio 16, 2012

Teme a Escuridão um conto de Sherrilyn Kenyon [Revista Bang nº12- Saida de Emergencia]

ATENÇÃO!!!
Este é um conto de Sherrilyn Kenyon, editado na Revista Bang º12 da Saída de Emergência.
Se ainda não leste os livros todos, e não queres saltar historias NÃO leias este conto.

NOVA ORLEÃES, 2007
Nick Gautier estava em casa.E estava lixado. Enquanto o seu táxi fazia o percurso desde o aeroporto até à sua casa na Bourbon Street, a meio da manhã, pudera ver as cicatrizes que ainda restavam do Furacão Katrina, e o seu sangue fervera literalmente.
Como podia aquilo ter acontecido? Fechou os olhos e tentou apagar da mente as imagens das janelas entaipadas e dos sinais de trânsito derrubados. As caravanas brancas da Agência Federal de Gestão de Emergências. Mas essas imagens eram substituídas pelas das notícias que vira, com as vítimas penduradas nos telhados, os incêndios, as turbas pelas ruas…
Nick não conseguia respirar. Nova Orleães era o seu lar. A sua pedra de toque. Aquela cidade dera-o à luz. Ela era o seu sangue vital. E, num piscar de olhos, fora devastada. Mutilada. Nunca, na sua vida, vira uma coisa como aquela.
Tendo crescido ali, conhecera, ao longo dos anos, numerosos furacões. Como não tinham dinheiro para evacuar durante as piores tempestades, ele e a mãe metiam-se no velho Yugo vermelho e iam para Hattiesburg, no Mississípi, onde acampavam no parque de estacionamento de um supermercado, a comer sanduíches de pasta de presunto com pão velho e pacotes de mostarda até ser seguro regressar. A mãe sempre conseguira, de alguma forma, tornar aqueles dias divertidos, como uma aventura, mesmo quando tinham de se agachar no carro durante os avisos de tornado.
Depois voltavam para casa e o que viam era parecido com o que ele vira agora, mas, em poucas semanas, tudo regressava ao normal.
Agora, quase dois anos depois do furacão, ainda havia lojas fechadas — lojas que ali estavam há anos, há séculos, em alguns casos. Havia zonas inteiras da cidade onde parecia que o furacão acabara de passar.
Quase todos os seus amigos tinham morrido ou sido deslocados. Pessoas que conhecia há décadas.
Num piscar de olhos, tudo mudara.
 Nick soltou uma gargalhada amarga perante este pensamento. Ele próprio mudara mais do que qualquer outra coisa. Já não era humano, e nem sequer tinha a certeza daquilo em que se tornara.
A única coisa que o fazia continuar em frente era a furiosa necessidade de se vingar daqueles que culpava pela sua catástrofe.
Ergueu uma mão para coçar o pescoço, depois estacou quando sentiu a marca da dentada. Com uma troca de sangue, Stryker tornara Nick seu agente. Se obedecesse ao líder Daemon, Stryker dar-lhe-ia meios para destruir o homem que arruinara a vida de Nick… e a da sua cidade.
Acheron Parthenopaus. Já tinham sido grandes amigos. Irmãos até ao fim. Depois Nick cometera o erro de dormir com uma mulher que ele ignorava ser a fi lha de Ash. Ash voltarase contra ele por essa razão.
Com isso conseguira lidar. O que os tornara inimigos fora a noite em que a
mãe de Nick morrera e Ash o permitira. Ao contrário dos outros seres imortais que faziam de Nova Orleães a ssua casa, Nick conhecia os segredos que Ash bem guardava. Ele não era apenas o líder dos Predadores da Noite, um guerreiro imortal que servia a deusa Artemisa e protegia a humanidade dos Daemones vampíricos que comiam as suas almas.
Ash era um deus. Tinha o poder para fazer tudo o que quisesse. Podia ter salvado a mãe de Nick ou, pelo menos, tê-la devolvido à vida, da mesma maneira como salvara Kyrian Hunter e a mulher, Amanda. Mas Ash não fi zera nada disso. Virara as costas a Nick e deixara Cherise Gautier morta.
E também não protegera a cidade da tempestade. Até à noite em que Nick dormira com Simi, Ash amara aquela cidade mais do que qualquer outra coisa. Nunca teria permitido que Nova Orleães sofresse assim. Mas isso fora antes de se tornarem inimigos. Agora Ash odiava-o tanto que lhe tirara tudo.
Tudo.
— Bonita casa.
A voz do taxista interrompeu os pensamentos de Nick. Olhou a mansão da Bourbon Street que era o seu lar desde que começara a trabalhara para Kyrian.
— Sim — disse ele, em surdina. — Pois é.
Ou, pelo menos, fora, quando ele a partilhara com a sua mãe.
Nick saiu e pagou ao taxista, depois retirou a mala do assento. Fechando a porta com força, olhou para a casa e apertou a maçaneta com tanta força que os seus dedos doeram em protesto.Comprara aquela casa como presente de aniversário para a mãe, quando tinha vinte anos. Ainda a conseguia ouvir soltar gritinhos de alegria quando ele lhe entregara a chave. Ainda a conseguia ver parada na sua frente, a olhá-lo, incrédula.
— Parabéns, mamã.
— Oh, Nick, o que foi que fizeste? Não mataste pr’aí ninguém, pois não?
A pergunta dela consternara-o.
— Mãe!
Ainda assim, ela mostrara-se implacável, enquanto fi xava no fi lho os seus olhos azuis e punha as mãos na cintura.
— E também não andas a passar droga, pois não? Olha que se andas, meu menino, eu amo-te muito, mas deixo-te negro de pancada.
Ele troçara dos seus avisos.
— Mãe, tu conheces-me. Eu nunca faria nada que te deixasse envergonhada na frente dos teus amigos da igreja.
— Então como é que arranjaste este dinheiro todo? Como conseguiste comprar uma casa tão chique com a tua idade? Ainda és um bebé, e eu não tenho dinheiro para pagar dois tijolos desta casa.
— Já te disse, sou assistente de um corretor do Garden District. Ele pôs a casa no meu nome mas, tecnicamente, continua a ser dele. Estou só a alugá-la. — Fora uma mentira parcial. Parte do seu papel como escudeiro de Kyrian, nos tempos em que Kyrian era um Predador da Noite implicava que todas as propriedades dele estivessem no seu nome… pelo menos no papel. Aquela casa, porém, era mesmo de Nick. O seu salário ter-lhe-ia permitido facilmente comprar três casas como aquela, mas a mãe nunca teria acreditado que ele pudesse ganhar tanto dinheiro sem infringir a lei.
— Corretor, hmmm. Isso a mim parece-me um desses eufemismos para um traficante de droga.
— Oh, mãe, anda lá dentro ver a biblioteca. Já trouxe para cá a tua poltrona, para
poderes ler aqueles romances que tanto adoras.
— Querido, tu estragas-me com mimos. Sabes que não preciso de uma coisa tão grande e tão chique.
Sim, mas, quando era miúdo, ouvira-a chorar muitas vezes a altas horas da noite por não poder dar-lhe melhor do que o seu dilapidado quarto alugado — por o único trabalho que conseguia arranjar ser como stripper. «O meu menino merece muito melhor do que isto.» Entretanto, os pais dela viviam numa bela casa em Kenner e possuíam dinheiro para dar e vender. Mas tinham-na deserdado ao descobrir que Cherise estava grávida dele. A mãe sacrificara tudo para manter o seu fi lho — a sua dignidade e o seu futuro. E, embora chorasse à noite por não lhe poder dar as coisas que julgava que um menino devia ter, era, durante o dia, a melhor mãe que alguém poderia desejar.
Desde o dia em que Nick nascera, tinham sido os dois contra o mundo.
— Sempre cuidaste de mim, mamã. Agora é a minha vez de cuidar de ti. Tenho uma casa grande porque quero dar-te um dia netos suficientes para a encher.
Nick estremeceu quando lhe pareceu ouvir o riso que ela soltara ao vento antes de correr para a casa para a inspecionar. Enquanto continuava ali parado, a chuva começou a cair em cima dele, encharcando-o até aos ossos.
Encontrara a mãe morta naquela poltrona na biblioteca…
Uma dor, um sofrimento inexorável, rasgava-o com as suas presas feitas de
aço. Dilacerava cada parte do seu ser.
Como podia ela ter morrido, e de uma forma tão horrível? Com a garganta cortada e o corpo exaurido de sangue. Ela era tudo para ele.
— Eu posso dar-te a vingança.
Fora a promessa que Stryker lhe fizera. O líder Daemon dissera-lhe que se Nick
lhe desse informações contra Acheron, e os outros Predadores da Noite, e os escudeiros que os serviam, então Stryker oferecer-lhe-ia o poder de que necessitava para matar Ash.
Era tudo o que Nick desejava.
Depois ouviu a voz de Ash na sua cabeça.
— Sabes, Nick, invejo-te a tua mãe. É uma senhora e tanto. Não há nada que não
faria por ela.
— Porque a deixaste morrer, Ash? — rosnou em surdina. — Maldito! — Mas,
no seu coração, sabia quem deveria realmente culpar por tudo aquilo, e isso doeu-lhe ainda mais. Se tivesse sido um filho melhor. Um melhor amigo. Nada daquilo teria acontecido.
Fora ele que se introduzira naquele mundo do qual o perigo era uma parte
intrínseca. Se tivesse contado a verdade à sua mãe, ela não teria ido para casa, naquela noite, com um Daemon. Teria fi cado em segurança. A mãe morrera por sua causa e essa era uma verdade que o magoava até ao mais profundo do seu ser.
Não aguentando mais aqueles pensamentos, obrigou-se a continuar até ao teclado numérico ao lado do portão e introduziu o código. Quase esperava que não funcionasse, mas funcionou.
Parou junto às petúnias que a mãe tinha plantado num grande vaso ao lado da porta das traseiras e desviou-o para poder retirar a chave suplente.
Estava tudo tal como o deixara quando era humano… Só que agora era tudo diferente. Com um aperto no estômago, abriu a porta e entrou em casa.
O amigo Kyl dissera-lhe que o local sofrera alguns estragos durante o Katrina, mas que a casa fora restaurada. Nick tinha de o conceder, parecia tudo impecável. Nada, para além da ausência da sua mãe, estava fora do sítio.
— Oh, Nicky, olha! Tem um desses trituradores de lixo! Nunca imaginei que alguma vez ia ter uma coisa dessas, e olha-me só os azulejos na parede. Aquilo é mármore italiano? Ele olhou de relance para a direita, onde estava a ilha com bancada de mármore italiano.
— Para ti, só o melhor, mamã.
— Estragas-me com mimos, querido. És a única coisa boa que fiz em toda a minha vida. Não sei porque Deus foi tão bom para mim e te enviou do céu, mas ainda bem que o fez.
Mas Nick Gautier não fora enviado pelo céu. Como o inútil sacana que o concebera e depois fugira, ele era um filho do inferno.
Pousou a mala ao lado da porta e atirou a chave para cima da bancada. Na última vez que ali estivera, chamara pela sua mãe. Gritara o seu nome enquanto corria pela casa, a tentar localizá-la.
Encontrara-a no andar de cima.
Contra a sua vontade, os seus pés levaram-no ao sítio exacto. Ficou parado naombreira da porta, a olhar a poltrona favorita da mãe. Na sua mente, conseguia ver ainda o seu corpo sem vida. Mas, na realidade, não havia quaisquer vestígios da morte dela…
Nem da sua. Naquele preciso local onde se encontrava agora, apelara à deusa grega Artémis para que o tornasse um Predador da Noite. Quando ela recusara e lhe dissera que ele tinha de morrer primeiro, Nick fizera explodir os miolos mesmo na sua frente.
Como medo da reacção de Acheron perante a sua morte, Artémis tornara-o imortal e marcara-o com o símbolo do arco e fl echa no rosto, mas ele não pertencia ao seu exército de protecção da humanidade. Tinha poderes maiores do que os outros. Podia andar à luz do dia.
E agora partilhava poderes com Stryker…
Nick franziu o sobrolho ao ver uma garrafa de Coca-Cola meio bebida em cima da mesinha de apoio. A mãe nunca tocava em Cola normal, apenas Diet, e ele nunca teria ousado deixar uma bebida no seu santuário secreto.
Estivera ali outra pessoa e, uma vez que havia um jornal desse dia aberto, ele diria que alguém se mudara para aquela casa.
A sua casa.
Sentiu-se invadido pela fúria.
Quem se teria atrevido?
Sedento de sangue, investiu pelas várias divisões, mas encontrou cada uma delas vazia e sem sinais de invasão.
— Tudo bem — rosnou. — Trato de ti mais tarde.
Primeiro queria visitar a mãe. Estremeceu perante essa ideia. Não estivera no cemitério desde que morrera o inútil do seu pai. Embora passasse pelo cemitério de St. Louis quase todos os dias, nunca fora um sítio onde passasse muito tempo. Fazia-o lembrar o pai e o gangue com que em tempos convivera. Um gangue que costumava assaltar turistas que ousavam entrar sozinhos no cemitério.
Mas agora iria visitar a sua mãe. Não estivera presente no funeral. O mínimo
que podia fazer naquele momento era dizer-lhe que continuava a sentir a sua falta.
De coração pesado, caminhou os poucos quarteirões que separavam a sua casa de Basin Street e chegou à entrada de pedra do cemitério de St. Louis. A chuva já tinha desaparecido, como era frequente em Nova Orleães. Agora a atmosfera estava quente e pegajosa.
Uma vez que era manhã, os portões de ferro forjado estavam abertos. Como Daemon e Predador da Noite, Nick não deveria ter sido autorizado a caminhar sob a luz do dia, mas um poder superior poupara-o a essa maldição. Como Ash, podia andar à luz do dia e, ao contrário de outros Predadores da Noite, podia entrar num cemitério sem ser possuído pelas almas perdidas ali encurraladas.
Sem se deter, dirigiu-se para o mausoléu da família Gautier. Enquanto passava pelas sepulturas elevadas que faziam com que os cemitérios de Nova Orleães fossem conhecidos como cidades dos mortos, reparou em quantas delas ainda evidenciavam sinais do furacão. Nem o túmulo de Marie Laveau parecia tão pitoresco como fora antigamente. A muitas das sepulturas faltavam nomes, e pedras.
Crescia dentro de si o receio do que o aguardaria no local de repouso da sua mãe. Mas, ao dobrar a curva para a sepultura de Cherise, estacou.
Menyara Chartier, uma pequena afro-americana de aparência frágil, estava sentada na frente do túmulo a conversar em surdina com a sua mãe, enquanto ordenava um ramo de lírios brancos. A Sumo-Sacerdotisa vudu parou a meio de uma frase e voltou a cabeça como se soubesse quem ali estava.
— Ni… — franziu a testa, impedindo-se de dizer o resto do nome.
— Tia Mennie — disse ele, e a sua voz estrangulou-se à medida que encurtava a distância entre ambos. Menyara era a inquilina que morava no quarto ao lado daquele onde crescera, e a mulher que assistira ao seu parto, uma vez que a mãe não tinha dinheiro para pagar um hospital. Ela fora o mais próximo de uma família que Nick e Cherise alguma vez tinham conhecido. — Ainda aqui está.
Ela ergueu-se lentamente. Com menos de um metro e meio, não seria intimidante para ninguém com mais de cinco anos, e, no entanto, havia nela algo tão poderoso que nunca deixava de o subjugar. Sem pensar, ergueu-a nos braços e abraçou-a com força.
— Eu sabia que voltarias — disse ela em voz baixa, antes de o beijar na face marcada.— A tua mãe pediu-me que olhasse por ti.
Para qualquer outra pessoa, este comentário poderia ter parecido estranho. Mas Menyara era uma dotada clarividente. Sabia coisas que mais ninguém sabia.
— Eu não matei a minha mãe — disse ele, depois de a voltar a depositar no chão. Esse fora o horrível boato que circulara.
Ela deu-lhe uma palmadinha no braço.
— Eu sei, Ambrosius. Eu sei. — Voltou-se e indicou a sepultura. — Todos os dias vim aqui no teu lugar, para a Cherise perceber que não está sozinha.
Ele baixou o olhar para os molhos de flores arranjados em torno do túmulo e viu um pequeno grupo de rosas negras que desabrochavam num minúsculo talhão de terra.
— Trazes-lhe flores?
— Não. Só arranjo as que o homem de cabelos negros lhe manda.
Nick franziu o sobrolho.
— Homem de cabelos negros?
— O teu amigo. Acheron. Sempre que está na cidade, também a vem visitar. E, todos os dias, sem falta, manda flores para a tua mãe.
Sentiu o sangue gelar nas veias.
— Ele não é meu amigo, Menyara.
— Tu podes não ser seu amigo, Ambrosius, mas ele é teu amigo.
Sim, pois. Os amigos não lixavam os outros da maneira como Nick fora lixado por Ash.
— Não o conheces. Não sabes aquilo de que é capaz.
Ela abanou a cabeça.
— Ah, sei, sim. Até melhor do que tu, acho eu. Sei exactamente quem ele é e o que é. Sei exactamente o que pode fazer. E, mais importante, sei o que não pode fazer. Ou o que não se atreve. — Levou-lhe a mão à marca e as suas feições suavizaram-se, mas não disse nada sobre a sua presença. — Tenho-te observado, durante toda a tua vida. A tua mamã sempre disse que reages sem pensar. Sentes com demasiada profundidade. Sofres com demasiada força. Mas um dia, Ambrosius, verás que tu e o teu amigo não são assim tão diferentes. Que há muito de ti dentro dele.
— Não sabes do que estás a falar. Eu não abandono os meus amigos, e nunca os magoo.
Ela indicou as  flores com um aceno de mão.
— Ele não te abandonou. Estava aqui quando o diabo soltou a sua fúria sobre nós. Acheron salvou-me a vida, e as vidas de muitos outros. Trouxe-nos comida quando não tínhamos nada para comer e impediu que a tua casa se incendiasse. Não o julgues por uma única má acção, quando ele fez tantas outras boas.
Nick não queria perdoar Ash. Não depois de tudo o que acontecera. Mas, apesar da sua fúria, sentiu o coração abrandar ao saber que Ash estivera ali — que não abandonara a cidade.
— Porque me estás a chamar Ambrosius?
— Porque é isso que tu és agora. Imortal. — Tocou-lhe a marca da mordedura no pescoço. — O meu Nick foi-se. Enterrado por emoções tão grandes que troçam da profundidade do oceano. Sabes dizer-me se o meu menino alguma vez regressará para casa?
Nick queria amaldiçoá-la. Queria gritar, mas no  fim sentiu-se como uma criança perdida que só anseia pelo toque da sua mãe. Um profundo soluço soltou-se do seu peito e, antes que se pudesse impedir, fez o que não fizera desde a noite em que encontrara a mãe morta.
Chorou. Só queria que aquela dor impiedosa dentro de si terminasse. Queria poder voltar atrás, ao tempo em que a mãe estava viva e Ash era seu amigo.
Mas como? Tinha mudado tanta coisa…
Menyara puxou-o contra si e abraçou-o com força. Não disse nada. Mas o seu toque acalmou-o mais do que quaisquer palavras.Ela pressionou os lábios contra o alto da sua cabeça e deu-lhe um beijo suave.
— Foste um bom rapaz, Ambrosius. Cherise ainda acredita em ti, e eu também. Ela quer que esqueças a tua raiva. Que sejas feliz outra vez.
Ele recuou com uma praga ao ouvir as palavras que o recordaram de uma coisa que a sua mãe diria.
— Como posso esquecer tudo enquanto a minha mãe está morta?
— Como podes não esquecer? — insistiu ela. — Era a hora da tua mãe, a sua hora de deixar este mundo. Ela agora está mais feliz, porque pode olhar por ti e…
— Não me digas isso — disse ele, por entre os dentes cerrados. — Odeio quando as pessoas me dizem essa merda. Ela não está mais feliz. Como podia estar?
Menyara abanou a cabeça.
— Então sai daqui e não manches a sua paz com o teu ódio. O ódio não pertence a este lugar. A tua mãe merece melhor do que isso da tua parte.
Ele abriu a boca para falar.
— Não quero ouvir, e a tua pobre mãe também não, Deus tenha a sua alma em descanso. Agora vai-te, sai daqui. Não voltes enquanto não puseres a cabeça em ordem e não conseguires pensar noutra pessoa para além de ti. Estás a ouvir-me?
Nick franziu os olhos. Podia discutir com ela, mas sabia que não valia a pena. Não havia como falar com Menyara, quando estava com aquele humor.
Enojado com tudo aquilo, voltou-se e saiu sem qualquer destino em mente. Limitou-se a caminhar, seguindo a direcção do Conti. As ruas eram sinistramente familiares e ao mesmo tempo tão vazias. Naquela altura do ano, devia haver montanhas de turistas por todo o lado. Comerciantes a lavar os vidros das montras e os passeios à mangueirada.
Em vez disso, havia cones de sinalização cor de laranja e coisas em construção em todo o lado. O som dos martelos pneumáticos substituíra o do jazz matinal e das buzinas a apitar. A dor infiltrava-se em cada partícula do seu corpo…
Até atravessar a estrada para o Acme Oyster House, em Iberville. Quantas vezes ali comera? Quantas gargalhadas e cervejas ali tinha partilhado com a mãe e os amigos?
Parecia na mesma, apenas mais fresco, da reconstrução. Parou junto à montra, a ver os empregados recolherem os pedidos e as pessoas a conversar, até o seu olhar se deter na mesa ao fundo.
O seu coração parou de bater. Era Kyrian Hunter e a mulher, com a  filha Marissa e um bebé que Nick nunca tinha visto antes. Estavam a rir e a conversar com outras pessoas a quem Nick chamara amigos, Vane e Bride, Juliane Grace. Mas o que o desorientou absolutamente foi o facto de estarem numa mesa com Valério e Tabitha. Uma vez que Tabitha era irmã gémea de Amanda, isso não era de estranhar.
O que o deixava atordoado era Valério.
Inimigo mortal de Julian e Kyrian, a família de Valério ludibriara e matara Kyrian — e depois destruíra o povo e a nação que ambos tinham lutado e morrido para proteger. Durante séculos, tinham alimentado um ódio amargo um pelo outro.
E agora Kyrian estava a depositar o seu bebé no colo de um homem a quem em tempos jurara decapitar…
Como acontecera aquilo?
— Nick?
Sobressaltou-se ao ouvir o baixo murmúrio atrás de si. Era a meia-irmã de Stryker, Satara. Alta e deslumbrante, era o epítome da beleza e graça femininas.
Deu um passo atrás para os outros não o poderem ver ali na rua.
— O que estás aqui a fazer?
— Tive uma estranha sensação que emanava de ti e quis ver o que a provocara.
Nick detestava que o facto de partilhar sangue com ela lhe permitisse sentir estas emoções. Era irritante haver alguém que o conseguia ler.
— Nada. Vai para casa, Satara.
Ela inclinou a cabeça para o lado, como se olhasse para Kyrian
e os outros lá dentro.
— É interessante, não é? Porque é que Acheron os trouxe de volta à vida quando morreram mas se recusou a fazer o mesmo pela tua querida mãe? Porque será que os escolheu em detrimento dela?
— Não preciso que venhas pôr o dedo nessa ferida.
— É verdade. De certeza que está ainda em carne viva.
Nem ela fazia ideia como.
— Mas — continuou ela, aproximando-se o suficiente para lhe sussurrar ao ouvido — porque hão de eles estar aqui, a viver felizes, enquanto a tua mãe está morta?
— Não comeces, Satara. Aquele homem e a família são a única coisa que me resta.
Ela ergueu a cabeça.
— São? E o que achas que dirão quando descobrirem que és um Daemon Predador da Noite? Que, por teu intermédio, o Stryker consegue ver e ouvir tudo o que fazem?
Nick começou a afastar-se, mas ela agarrou-o para o deter. As suas longas unhas enterraram-se-lhe no braço.
— A velha cabra vudu contou-te que Acheron esteve aqui a ajudar, em Nova Orleães, depois do furacão, mas contou-te quem é a mãe dele?
Nick ficou estupefacto ao ouvir as suas palavras.
— Ash tem mãe? Viva?
Ela sorriu.
— Oooh, mais um segredo que ele te ocultou, não foi? Grandes amigos que eram. Dá que pensar, não dá, que outras coisas não saberás a seu respeito?
Sim, dava mesmo. Soltou-se da mão que o prendia.
— Quem é a mãe dele?
— A deusa atlante, Apollymi. Mas é mais conhecida no mundo imortal como a Grande Destruidora.
— Destruidora?
— Sim. Ao longo dos séculos, sem precisar de qualquer outra razão para além de não gostar do seu cabelo num determinado dia, tem soltado terríveis tempestades contra civilizações, e estava altamente aborrecida naquela noite em que Desiderius andou a causar
estragos aqui em Nova Orleães.
Nick ficou sem respirar ao recordar essa noite. Desiderius fora agente de Stryker, e fora ele que matara a sua mãe.
Satara aproximou-se para lhe sussurrar outra vez ao ouvido:
— E ela também é mãe do meu irmão Stryker. Sabes de quem estou a falar. O líder dos Spathi Daemones. Quem achas que segura a coleira do meu irmão? Quem achas que controla o exército do Stryker?
Nick sentiu a raiva crescer dentro de si perante todas as verdades que Ash ocultara, dele e dos outros.
— A mãe de Ash é a líder dos Daemones?
— É, sim. Agora sabes porque Ash tem tantos segredos. Que diriam todos vocês se soubessem que é a sua querida mãe que controla os vossos inimigos? Foi por isso que ele não falou a ninguém dos  Spathi Daemones como Desiderius. E é por isso que fica sempre de fora em tais conflitos. Ele não é o mau da fita. A mãe é que é. Habitua-te à ideia. Ash tem mentido a todos desde o princí-pio. Artémis não o controla. Ele é que a controla. Ela vive no mais absoluto medo dele.
Nick lembrou-se da noite em que se suicidara na frente de Artémis. Satara tinha razão. A deusa ficara com pavor de Acheron e da sua reacção à morte de Nick. Fora apenas isso que a fizera reanimá-lo. Mesmo sendo contra as regras.Ainda assim, não conseguia tirar as palavras de Menyara da cabeça.
— Menyara nunca se enganou a respeito de nada.
— Menyara nunca tinha conhecido um deus que consegue alterar os pensamentos e percepções dos outros. Pensa nisso, Nick. Quantas vezes os P r e d a d o r e s do Homem i n t e r f e r i r a m com os pensamentos de uma pessoa para a fazerem esquecer que viram qualquer coisa sobrenatural?
Mais vezes do que ele podia contar.
— Mas Ash sempre se refreou de o fazer.
— Isso é o que ele te diz. E, no entanto, quantas vezes as pessoas dizem uma coisa e depois fazem outra?
Mais uma vez, ela tinha razão.
Satara encostou-se a ele e esfregou-lhe os bíceps.
— Tu és abençoado com a verdade. Nada é o que parece, no mundo dos Predadores da Noite. Acheron tem enganado toda a gente… excepto a ti. A questão agora é: vais deixar que continue a magoar as pessoas a mando dasua mãe ou vais impedi-lo? Quantas pessoas mais terão de morrer porque Acheron é um sádico cruel? Acheron ou nós, Nick. Em que lado queres ficar?
No seu próprio. Os outros que fossem para o inferno. Mas não queria que ela
soubesse isto. Pelo menos naquele momento.
Satara brincava-lhe agora com o cabelo.
— O Stryker deu-te um meio de te vingares. A única questão agora é saber se és homem suficiente para o aproveitares.
Ele franziu o lábio num trejeito de desdém.
— Eu não sou homem, Satara. Sou um imortal com poderes divinos.
Ela inclinou a cabeça para ele.
— E, desde que não te esqueças disso, Acheron é teu.
Nick olhou de relance para o restaurante e a verdade feriu-o duramente. Teria sacrificado Kyrian e a sua família para ter a mãe de volta. Amizade era uma coisa. Família era outra. Embora Kyrian tivesse sido como um irmão, não era do seu sangue. Nick fora capaz de vender a alma por vingança, e assim continuava.
— Sê verdadeiro para connosco, Nick, e nós podemos dar-te o que mais desejas.
Nick soltou um riso escarninho.
— Tu não sabes o que eu quero.
— Sei, sim. Queres vingança e queres a tua mãe de volta.
— Eu consigo vingar-me.
— Verdade, e nós podemos devolver-te a tua mãe.
De que raio estava ela a falar agora? A cabra era maluca.
— Não sejas estúpida. A minha mãe morreu. Não há como voltar atrás.
— Não? Tu estás aqui, e no entanto já estiveste morto. — Ela estalou os dedos. No instante seguinte, apareceu um homem alto de cabelos negros ao seu lado. Com um metro e noventa e dois de altura, Nick não estava habituado a ter de erguer o pescoço para olhar para muitos homens, mas com aquele teve de o fazer. E, pelo azul luminoso dos seus olhos, Nick soube exactamente o que era aquele homem.
Um Predador de Sonhos.
Deuses do sono, eram enviados do Olimpo para ajudar e proteger os sonhadores. E, por intermédio de um pacto com Acheron, muitos deles eram enviados para ajudar Predadores da Noite. Para os ajudar a recuperar, especialmente enquanto dormiam, de forma a poderem continuar a proteger a humanidade do mal que a perseguia.
Aquele não era o primeiro Predador de Sonhos que o abordara. Já mandara embora M’Adoc, quando o deus se oferecera para o ajudar a esquecer a dor pela morte da mãe. Nick não queria esquecer a mãe nem aquilo que acontecera.
Acenou com o queixo na direcção do recém-chegado.
— Não preciso da ajuda dele.
— Claro que não, Nicky. Mas Kratos consegue fazer a única coisa que nem Acheron consegue.
— O quê?
— Trazer uma alma do seu sono eterno e devolvê-la à terra dos vivos.
Nick não era tão estúpido que fosse comprar o que ela estava a querer vender.
— A que preço?
— Um acto de lealdade por nós. Tu levas a filha de Kyrian, Marissa, para Kalosis, e nós devolvemos a tua mãe a este mundo.
Ele continuava céptico.
— Não podes fazer isso.
Satara fez um sorriso presunçoso.
— Kratos. Uma demonstração, por favor.
Antes que Nick se pudesse mover, o Predador de Sonhos tocou-lhe. O seu toque queimou-lhe a pele, fazendo-a arder e formigar à medida que ele era assaltado por imagens. Viu a mãe num jardim, rodeada de rosas. O cabelo louro pela altura do ombro cintilava à luz, enquanto ela se ria de um grupo de crianças que brincavam à sua volta.
Uma lágrima correu-lhe pelo rosto ao ver novamente o seu rosto bondoso.
— Mãe — murmurou.
Ela ergueu a cabeça, como se o tivesse ouvido.
— Meu Nicky — sussurrou. — Tenho saudades tuas.
— Posso levar-te para o Submundo — disse o Predador de Sonhos. — Mas não
vai ser fácil. — Depois largou Nick e a imagem da sua mãe desvaneceu-se instantaneamente.
Nick teve de se esforçar para conseguir respirar.
— Como é que eu sei que posso confiar em ti?
— Eu não tenho emoções. Só faço o que me mandam. A traição é para aqueles que têm alguma coisa a ganhar.
Era verdade. Os Predadores de Sonhos tinham sido amaldiçoados por Zeus para não sentirem nada.
Satara sorriu-lhe.
— É demasiado cedo, Nick. Eu sei. Vai para casa e descansa. Quando estiveres pronto para ter a tua mãe de volta, traz-nos Marissa.
Nick anuiu antes de lhe virar as costas e fazer o que ela dissera.
Satara franziu os olhos enquanto Nick desaparecia de vista. Ele estava a mostrar-se bastante teimoso, mas ainda podiam controlá-lo. Ele precisava que o sangue deles continuasse a viver e, enquanto o tivessem atado, não havia nada que pudesse fazer para se escapar.
Pelo menos, nada que não envolvesse suplicar a Acheron por ajuda e essa era a última coisa que Nick faria.
— Queres mesmo que traga a mãe dele de volta do Submundo? — perguntou Kratos. — Isso vai exigir uma tremenda dose de cooperação da parte de Hades.
Ela fez um riso de troça.
— Claro que não. Ganhamos a Marissa e ele e a mãe que fiquem a assar no inferno. Mas tu és uma outra história. Quero-te nos seus sonhos, todas as noites, a trabalhá-lo. Ele tem fúria sufi ciente para te alimentar, meu Skotos. Joga com essa fúria. Fá-la crescer até o deixares disposto a fazer qualquer coisa para libertar a sua mãe e matar Acheron.
Ela viu a hesitação nos olhos de Kratos.
Enrolou o lábio num trejeito de desdém.
— Oh, não me digas que também te vais tornar um mariquinhas. Estou farta de homens fracos à minha volta.
Ele agarrou-a e encostou-a à parede.
— Não sou mariquinhas, Satara. Será melhor para ti que não te esqueças disso.
Ela abanou a cabeça.
— Para um deus sem emoções, pareces-me bastante irritável.
Ele soltou-a.
— Estou a ficar farto de ti e do teu ódio. Até neste reino, é pungente.
— Deixa o meu ódio em paz. Não o quero diminuído. Lembra-te, Predador de Sonhos, eu também sou uma deusa. Brinca comigo e eu trago a fúria de Zeus sobre ti.
— Não passas de uma semideusa, e de uma serva, ainda por cima.
— Mas o querido vovô Zeus vai ter uma audiência comigo e depois arrancar te a cabeça. Estás disposto a correr esse risco?
Ele deu um passo atrás e lançou-lhe um olhar que a fez perceber que devia
ter cuidado enquanto dormisse, de futuro.
— Limita-te a fazer a tua parte, Kratos, e eu faço a minha. Os Oneroi não controlam os sonhos dos Daimones. Ajudame a manter Nick contra Acheron e eu dou-te um campo de acção nunca sonhado pela tua irmandade.
Kratos engoliu a promessa. Três semanas antes, ele era um dos Oneroi. Um servidor dos deuses que protegia humanos e imortais enquanto dormiam. Depois Satara convocara-o nos seus sonhos e transformara-o em Skoti. Seduzira-o com o seu corpo e  fi zera-o ansiar por emoções como por uma droga. Agora ele não suportava o vazio da sua existência. Só queria sentir, e estava disposto a fazer qualquer coisa para manter aquelas emoções recém-descobertas.
Ela tinha razão. Os seus pares não caçavam Daemones, e se eles tivessem apenas metade do poder sedutor de Satara, então ele teria um banquete ao alcance dos dedos.
E a única coisa que tinha de fazer era alimentar o Predador da Noite com fúria e sofrimento. Simples.
— Combinado, Satara. Dá-me o que preciso e eu dou-te o que tu queres.
Ela sorriu. O que ela queria era simples. A lealdade de Nick Gautier e a bebé Marissa. Com essas duas coisas, poderia derrubar tanto o panteão grego como o atlante.
Depois seria uma deusa, e faria Apollymi parecer uma fraca.
E Nick, Acheron e Kratos seriam seus eternos escravos


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3 comentários:

  1. Olá, onde posso comprar este Livro?
    resposta por favor para o flormvs@hotmail.com
    Obrigada

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    1. Boa Noite Vanda,

      Este conto está na revista Bang nº 12 da Saída de Emergência. Tanto quanto sei, não existe livro fisico. Podes encontra aqui

      http://www.saidadeemergencia.com/files/products/RevistaBang_12_Net.pdf

      A Partir da pagina 31 a 33, salvo erro :)

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