segunda-feira, dezembro 24, 2012

O Natal de um predador da Noite - Sherrilyn Kenyon [Saida De Emergencia]




Nascido de pais pobres e imigrantes, no virar do século, James Cameron Patrick Gallagher já era irritável quando veio ao mundo. Em nada
ajudou o facto de ter nascido, nas traseiras de uma fábrica clandestina incrivelmente degradada, de uma mulher tímida e receosa que fora obrigada
a regressar ao trabalho poucas horas depois de ter dado à luz directamente
para as mãos do pai, alcoólico e nervoso. Um pai cuja relação com o rapaz
era, na melhor das hipóteses, indiferente e, na pior, violenta.
Desde o momento do primeiro choro, Jamie passou a vida a lutar por
respeito. A lutar para sair da pobreza que o assolava, enquanto crescia nos
degradados bairros irlandeses de Nova Iorque. Aos quinze anos encontrou
a sua saída. Corria o ano de 1916 e dois acontecimentos ocorreram na sua
vida. O pai morreu em consequência de ter escorregado e caído ao rio a
caminho de casa, depois de uma farra de três dias a beber. Passadas duas
semanas, Jamie foi trabalhar com o famoso gangster Ally Malone, de modo
a poder sustentar a mãe e os oito irmãos mais novos. Brutamontes e arruaceiro, Ally ensinara-lhe uma forma de ganhar dinheiro que i zera com
que a sua pobre mãe i casse com os joelhos doridos devido às incontáveis
novenas que rezara pelo i lho. Mas, no que a Jamie dizia respeito, isso não
era problema. O seu novo estilo de vida permitia-lhe comprar almofadas
de seda à mãe, para apoiar os joelhos gastos pelo trabalho e, em vez de rezar com um barato rosário de madeira, ela usava, agora, um feito de ouro
e mari m. O mesmo rosário que ela lhe atirou à cara quando soube toda a
verdade sobre o i lho: Jamie não era um pobre inocente desviado para maus
caminhos por pessoas decididas a aproveitarem-se dele. Quando chegou
aos vinte anos, era um gangster feroz a ter em conta. Afastado pela mãe,
dera ao irmão mais novo um trabalho respeitável, para que Ryan pudesse
cuidar da família mas, sem que a mãe o soubesse, eram os ganhos ilícitos de
Jamie que os mantinham a todos alimentados.
Jamie aprendera a endurecer o seu coração e a não se preocupar com
nada nem ninguém. Tornou-se Gallagher. Um homem sem outro nome.
Um homem que não deixava ninguém aproximar-se de si, que não deixava
que ninguém o conhecesse. Era frio como gelo e duro como pedra.
Até ao dia em que Rosalie entrou na sua vida e quebrou o seu invólucro de granito. Filha de imigrantes portugueses, estava de regresso a casa
depois da missa, quando Jamie chocara com ela, na pressa de apanhar um 6 
“parceiro” de negócios com quem precisava de lidar. Era uma fria tarde de
Inverno e a neve caía sobre a cidade. Onze de Fevereiro de 1924, uma data
que i caria gravada na sua mente e no seu coração para toda a eternidade.
No momento em que Rosalie voltou para ele os olhos castanhos-escuros,
sentiu todo o seu corpo ser consumido pelo fogo. Pela primeira vez em
muitos anos, sentiu algo mais do que ódio frio e cego.
— Peço imensa desculpa — sussurrara ela, na sua pronúncia exótica,
limpando-lhe o dispendioso fato feito à medida. — Não o vi por causa da
neve.
— A culpa foi minha — apressou-se ele a garantir-lhe.
Sem dúvida, qualquer outro homem na sua posição ter-lhe-ia batido
ou gritado com ela. Tal pensamento fez com que o seu corpo fosse varrido
por uma onda de fúria despropositada. Tratava-se de uma estranha e, no
entanto, sentia-se possessivo em relação a ela. Respeitoso. Duas emoções
que nunca sentira por nenhuma mulher que não fosse da sua família.
— Rosalie! — gritara a mãe, que voltara para trás em busca da i lha. —
Não deves falar com homens assim. Quantas vezes tenho de to dizer?
Pegou em Rosalie pelo braço e lançou a Jamie um olhar suplicante e
servil.
— Perdoe a minha i lha, senhor. É jovem e tola.
— Não faz mal, senhora — disse ele, rapidamente.
Então os seus olhos encontraram-se com os olhos muito abertos de
Rosalie. Ela era verdadeiramente bela. O seu cabelo, preso numa trança
e enrolado em volta da cabeça, i cara exposto quando o véu caíra, depois
de terem colidido. Os seus olhos castanhos eram puros. Inocentes. Absolutamente intocados pela violência sangrenta que sempre i zera parte
da vida de Jamie. Acima de tudo, os seus olhos eram gentis. Não queria
que nada turvasse esse olhar. Que o tornasse duro e frio. Amargo. Como
o seu.
— Dá-me permissão para que corteje a sua i lha?
As palavras saíram-lhe da boca antes que as pudesse parar. A expressão
da mãe dela foi de puro horror. Irlandeses brancos não cortejavam mulheres portuguesas. A sociedade jamais toleraria tal coisa.
— Não — respondeu ela com rudeza, arrastando a i lha para longe dele.
Jamie talvez tivesse aceite o não como resposta. Gallagher não o aceitaria.
Gastara bem mais de cem dólares em subornos para localizar Rosalie, mas
valera cada cêntimo. Independentemente dos pais dela, dos seus próprios
associados e da sociedade em geral, i zera dela sua esposa a 17 de Junho de
1925. Apenas Rosalie conhecera realmente Jamie. E ele morrera a tentar 7 
chegar junto dela, enquanto ela lutava para trazer ao mundo o seu único
i lho, um rapaz. Também essa fora uma noite fria, com neve. Poucos dias
antes do seu trigésimo terceiro aniversário. Ele sabia que as autoridades o
perseguiam; sabia que havia um ini ltrado na sua empresa, embora estivesse a tentar endireitar-se. Nada disso tinha importado. Rosalie precisava dele
e ele recusava-se a decepcioná-la. Foi uma decisão que lhe custou a vida e
a alma.
SETENTA ANOS DEPOIS, NOVA ORLEÃES
G
allagher franziu o sobrolho ao sentir algo a lamber o fundo das costas.
Era uma sensação que, aprendera há vários anos, assinalava a aproximação de um daemon. Virou o seu Bugatti Atlantic Aerolithe, único no
mundo, para uma rua lateral e estacionou-o. Oh, sim! A sensação estava lá,
ainda mais forte do que antes. Só fora a Nova Orleães uma mão cheia de
vezes e, embora a cidade não tivesse mudado muito, ainda lhe foram necessários alguns minutos para se recordar da disposição do Bairro Francês. A
luz da lua, i ltrada através das varandas de ferro forjado e das plantas penduradas, iluminava as velhas fachadas de tijolo. Podia ouvir o ruído débil
de risos e música, bem como os carros que assobiavam ao passar. Esticou a
cabeça para escutar, esperando por um sinal que lhe indicasse a localização
dos daemon. Ouviu um grito. Correndo na sua direcção, percorreu os becos escusos até encontrar a jovem, perto de um monte de lixo, rodeada por
quatro daemon machos, enquanto um quinto enterrava as presas no seu
pescoço. Furioso, Gallagher atirou-se a eles.
Os daemon atacaram-no em simultâneo, não que isso lhes tivesse servido de muito. Um par de golpes bem colocados e o apunhalar rápido dos
seus peitos e eles passaram à história. Gallagher correu para a mulher e
ajoelhou-se ao seu lado. Gentilmente, voltou-a e viu uma rapariga que não
tinha mais de vinte anos. Amaldiçoou o destino que a tinha colocado no
caminho dos daemon. Felizmente ainda estava viva, embora lutasse para
respirar. Tirou o lenço com monograma do bolso do casaco e usou-o como
torniquete improvisado na ferida de mau aspecto que ela tinha no pesco-
ço. Movendo-se rapidamente, transportou-a até ao carro e conduziu até às
urgências mais próximas, onde i cou a saber que o pessoal do hospital não
gosta muito de admitir a entrada de mulheres desconhecidas, transportadas por estranhos com roupas ensanguentadas. Assim que conseguiu pôr
Nick Gautier em contacto telefónico com o funcionário e se assegurou que
a rapariga desconhecida seria atendida, Gallagher respirou fundo. Permaneceu no hospital, querendo assegurar-se de que ela sobreviveria. Ansioso 8 
e incapaz de i car quieto enquanto o pessoal cuidava dela, deu por si a deambular pelos corredores.
O local estava enfeitado para as festas. Os festões verdes e vermelhos
e os recortes em forma de l or-do-natal transmitiam uma sensação de calor ao branco assético. Algumas enfermeiras e jovens visitantes sorriram,
de forma convidativa, ao passar por ele. Mas, por outro lado, as mulheres
sempre o tinham feito. Tinha um metro e noventa e três de altura, cabelo e
olhos negros, e músculos fortes e bem dei nidos. O tipo de homem em que
as mulheres tendem a reparar. Nunca sentira vaidade por isso. Que as mulheres gostassem de olhar para ele e, muitas vezes, lhe i zessem propostas
era, simplesmente, um facto da vida. E, embora se tivesse sentido tentado,
uma ou duas vezes ao longo das décadas, não voltara a tocar em qualquer
outra mulher. Não enquanto a sua mulher vivera. Gallagher podia ter violado todas as leis existentes, mas nunca violara um único voto. Em especial,
um que tivesse sido feito a alguém que amava. Mesmo depois da morte de
Rosalie, não sentira o desejo de tocar noutra mulher. Por isso, Gallagher
limitou-se a acenar-lhes e continuou a andar.
Pouco depois chegou à enfermaria pediátrica. Sentiu um nó no estô-
mago quando compreendeu onde se encontrava. Tempos houvera em que
esperara ir a um hospital para ver o seu i lho. Não conseguira lá chegar.
Apressado e sem pensar, saíra do edifício onde tinha o seu escritório a correr e tentava entrar para o carro quando deu por si rodeado de polícias.
Gallagher, que nunca recuara perante uma luta, levantara as mãos. Mataram-no na rua, como se fosse um animal raivoso. Incapaz de lidar com
aquela recordação, Gallagher estava prestes a voltar a dar meia volta e a
partir quando algo inesperado prendeu o seu olhar…
Viu um elfo de aspecto estranho, com uma camisa de Pai Natal vermelha, uma saia verde muito curta e meias altas de riscas vermelhas e brancas
que desapareciam no interior de um par de gastas botas da tropa. Cantava
a um grupo de miúdos com uma voz que rivalizaria com um coro celestial,
tal era a sua beleza melódica. A mulher era alta e extremamente atraente, de
uma forma estranha, com olhos fantasmagóricos, castanho-avermelhados,
que deviam ser o resultado de um qualquer tipo de lentes de contacto; orelhas pontiagudas e cabelo negro com madeixas vermelhas. Mas o que mais
o surpreendeu foi o homem que se encontrava com ela. Acheron Parthenopaeus. O glorioso líder dos Predadores da Noite estava sentado no chão,
rodeado de crianças, enquanto tocava guitarra e fazia coro com a mulher.
Gallagher i cou espantado com aquela imagem. Durante todos aqueles
anos em que conhecera Ash, nunca o vira relaxar. Normalmente, Acheron
libertava uma aura absolutamente letal e calma, que avisava as pessoas que
deveriam manter-se à distância se quisessem permanecer vivas. Mas esse 9 
não era o Ash que agora via. O homem sentado no chão mais parecia uma
criança. Acessível e gentil. A voz profunda de Ash misturava-se com a do
elfo enquanto cantavam Put a Little Love in Your Heart de Jackie Deshan.
— Ora, aí está algo que não se vê todos os dias, hã? Dois góticos, punks,
a dar uma festa de Natal para crianças doentes.
Gallagher voltou-se e viu uma médica afro-americana de meia-idade a
seu lado. Ela parecia cansada mas divertida, enquanto olhava para Ash e a
sua ajudante éli ca junto das crianças.
— Nem faz ideia — disse-lhe ele.
A médica sorriu.
— Tenho de admitir que demorei algum tempo a habituar-me, quando
comecei a trabalhar aqui, há alguns anos. Pensei que estavam a gozar quando me falaram do Anjo da Guarda gótico e do seu fundo de apoio para as
crianças.
Gallagher arqueou uma sobrancelha quando ouviu a alcunha.
— Então, ele vem aqui muitas vezes?
— De dois em dois meses ou assim. Traz sempre presentes para as crian-
ças e para o pessoal, e depois brinca durante algum tempo com os miúdos.
Gallagher não teria i cado mais admirado se ela lhe tivesse dito que Ash
incendiava, frequentemente, o hospital.
— A sério?
— Oh, sim! Calculamos que ele seja um miúdo rico que sente a necessidade de fazer o bem. O mais estranho é que, sempre que ele vem, os
miúdos i cam absolutamente calmos e serenos. A sua pressão sanguínea
desce e nunca temos de lhes dar analgésicos enquanto ele cá está. Depois
da sua partida, dormem durante horas. E o melhor de tudo, os pacientes
com cancro entram em remissão durante várias semanas, depois das suas
visitas. Não sei o que tem aquele jovem mas faz, realmente, a diferença nas
vidas deles.
Gallagher conseguia compreender isso. Embora Ash pudesse ser assustador, havia algo estranhamente reconfortante no Atlante.
Assim que Ash reparou na sua presença, Gallagher viu um véu descer
sobre o seu rosto. O bom humor desapareceu e Ash i cou visivelmente rígido. Tornou-se o soturno líder que não faz prisioneiros, que Gallagher bem
conhecia. Assim que a música terminou, Ash entregou a guitarra a uma das
crianças mais velhas e deixou-as com um pedido de desculpas. Levantou-se
e saiu da sala, os membros longos e soltos conferiam-lhe um andar predató-
rio. O rosto de Ash mostrava-se impassível quando cruzou os braços sobre
o peito e se aproximou de Gallagher.
— Santo Ash, quem diria?
Ash ignorou o comentário.10 
— O que estás a fazer aqui?
Gallagher encolheu os ombros.
— Estava apenas de passagem.
Ele esticou a cabeça.
— De passagem? Da última vez que vi, Chicago i cava a norte de Baton
Rouge, não a sul.
— Eu sei. Mas já que estava perto, quis passar pelo Santuário e desejar
a todos um feliz Natal.
Ash escutou os pensamentos de Gallagher e deixou que as suas emo-
ções o varressem. A esposa de Jamie tinha morrido de velhice, no Verão
anterior, e a sua morte tinha afectado muito o irlandês. Assim que “soubera” da sua morte, Ash fora de imediato ter com Jamie e descobrira que este
tinha violado o Código de Conduta e a fora visitar enquanto ela estava no
hospital. Ash decidira ignorar a falta. Podia nunca ter conhecido o amor
de um ser humano, mas compreendia aqueles que eram sui cientemente
afortunados para o terem vivido.
— Fazemos assim, já que cá estás, porque é que não i cas até depois do
Ano Novo?
Jamie escarneceu.
— Não preciso da tua piedade.
— Não é piedade. É uma ordem. Já que o Kyrian se reformou, fazia jeito
ao Talon uma ajuda. As coisas i cam bastante turbulentas nesta altura do
ano. Muitos daemon viajam para sul, em busca de calor, e as pessoas saem
para a rua para festejar o Ano Novo.
— Estás a gozar comigo ou quê?
Antes que Ash conseguisse responder, a mulher elfo saiu da sala, segurando uma criança pequena que apoiava sobre a anca.
— Akri? — disse a Ash, numa estanha voz cantada. — Posso i car com
ele?
Ela deu uma palmadinha na perna gorducha que emergia de debaixo
da camisa de hospital.
— Vês, é bom para comer. Este tem muita gordura.
A criança de cabelos negros riu.
— Não, Simi — disse Ash com i rmeza. — Não podes i car com o bebé.
A mãe sentiria a falta dele.
Ela fez um beicinho.
— Mas ele quer ir para casa com a Simi. Foi ele que disse.
— Não, Simi — repetiu Ash.
Ela amuou.
— Não, Simi; comida, não. Ralha, ralha, ralha. O teu pai também está
sempre a ralhar contigo? — perguntou ao rapazinho.11 
— Não — respondeu ele, enquanto puxava um dos chifres pretos e vermelhos no topo da cabeça dela.
Ash suspirou.
— Simi, leva o bebé para dentro.
Ela deslocou-se por forma a i car à frente de Ash.
— Está bem, dá-me um beijo e eu vou.
Ash parecia muitíssimo desconfortável ao olhar de lado para Gallagher
e novamente para ela.
— À frente do Predador, não, Simi.
Ela emitiu um estranho ruído animalesco e olhou para Gallagher.
— A Simi quer um beijo, Akri. Espero nem que seja um século. Sabes
que sim.
Dizer que Ash parecia irritado é pouco. Ele inclinou-se e deu-lhe um
beijo rápido na testa. Ela brilhou de orgulho, depois trotou para longe com
a criança.
— Quem é aquela? — perguntou Gallagher. — Ou talvez deva perguntar, o que é aquilo?
— Em resumo, não é da tua conta.
Ash esfregou a testa com a mão, como se estivesse com dores.
— Onde é que íamos?
— Eu perguntei-te porque é que me estavas a dar um trabalho temporário em Nova Orleães.
— Porque o Talon precisa de uma ajuda.
— Pergunto-me o que diria o Talon?
— Dir-te-ia para não me chateares.
Gallagher soltou uma gargalhada breve.
— Está bem, então. Vou ter isso em conta.
Ash observou a mulher na sala com as crianças.
— Podes i car com os Peltiers no Santuário. Quanto a mim, é melhor ir
antes que um daqueles miúdos acabe num pacote de leite.
Gallagher observou enquanto Ash corria para a sala para tirar uma
rapariguinha ao elfo e a pousava no chão. O elfo afastou-se, dançando, e
dirigiu-se para outra criança. Abanando a cabeça perante a estranheza da
cena, Gallagher dirigiu-se para o elevador para regressar ao andar de baixo
e verii car o estado da sua paciente. A enfermeira disse-lhe que ela estava
bem. Gallagher suspirou de alívio. Então a enfermeira levantou-se e tocoulhe no braço.
— Venha — disse a mulher, inclinando a cabeça para trás. — Ela quer
agradecer-lhe.
— Não preciso que me agradeçam.
— Querido, todos precisamos que nos agradeçam. Anda.12 
Antes que o pudesse impedir, já deixara que a enfermeira o levasse até à
pequena sala das urgências dividida por cortinas. A jovem morena sentouse na maca; tinha uma ligadura, demasiado grande para ela, no pescoço. Os
grandes olhos verdes estavam um pouco turvos mas brilharam assim que
se ergueram na direcção dele. A enfermeira deixou-os sozinhos.
— És tu o homem que me salvou? — perguntou ela.
Sentindo-se embaraçado, acenou. A rapariga remexia o cobertor que a
tapava.
— Obrigada. A sério.
— O prazer foi meu. Só estou feliz por te ter encontrado naquela altura.
— Sim, eu também.
Gallagher voltou-se para sair.
— Bem, preciso…
A voz faltou-lhe quando uma jovem muito bela atravessou as cortinas.
Era alta, provavelmente com cerca de um metro e setenta, de cabelo negro
e olhos de um azul profundo.
— Jenna! — gritou ao ver a amiga na maca. — Oh, graças a Deus que
estás bem. A senhora ao telefone disse que tinhas sido atacada.
Os olhos de Jenna encheram-se de lágrimas.
— Não sei o que aconteceu. Estava a ir para o meu carro e não me lembro de nada depois disso. Se não fosse ele, provavelmente estaria morta.
A rapariga voltou-se e estacou. Parecia que tinha acabado de ver um
fantasma. Gallagher olhou para ela, desai ador.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou.
— Não. — Ela agitou a mão como se se estivesse a sentir tola. — Desculpe, faz-me lembrar alguém, mais nada.
— Um antigo namorado?
— Não, o meu bisavô.
— Isso não é particularmente elogioso. Pensava que até estava bem para
a idade.
Ela riu.
— Não, quero dizer… Oh, esqueça!
Jenna inclinou a cabeça, olhando para ele.
— Parece-se de facto com ele, Rose. Tens razão.
Rose. O nome atingiu-o como um murro. Antes que se pudesse mexer, a rapariga chamada Rose aproximou-se dele. Puxou um medalhão
de ouro gravado de debaixo da camisola castanha. Era um medalhão
que conhecia bem. Desde o pormenor da granada e dos diamantes que
formavam um círculo na frente até à inscrição na parte de trás. “Para a
minha Rose. Feliz Aniversário. 1930”. Ela abriu o medalhão para revelar
as duas fotograi as no seu interior. Uma era a fotograi a que Rosalie lhe 13 
pedira que tirasse meses antes de morrer e a outra era a do seu i lho com
dois anos de idade.
— Vê — disse a rapariga, mostrando-lhe a fotograi a —, parece-se muito com o meu avô Jamie.
Com um aperto no coração, Gallagher engoliu em seco. Queria estender a mão e tocar-lhe, mas as suas mãos tremiam de tal forma que não se
atreveu.
— Onde é que arranjaste isso?
— Deu-mo a minha bisavó na passada Primavera. Já que recebi o nome
dela, quis que i casse com ele.
Ela sorriu tristemente, fechou o medalhão e voltou a colocá-lo debaixo
da camisola.
— O meu pai diz que o avô Jamie era um gangster, mas eu não acredito.
A avó Rose nunca teria casado com alguém assim. Ela era uma santa.
Tinha de se obrigar a respirar, de se impedir de a esmagar com abraços
e chorar. A sua bisneta. Rosalie. Esta jovem alegre era uma ligação viva com
a sua esposa. Quando ele falou, a sua voz era grossa e profunda.
— Ela devia amar-te muito para te dar isso.
— Eu sei. Ela usou-o durante todos os dias da sua vida até mo ter dado.
É simplesmente estranho, compreende? Parecer-se tanto com ele e tudo o
mais.
Gallagher limpou a garganta.
— Sim. Estranho.
Não conseguia afastar os olhos dela. Não via grande coisa de si mesmo
ou de Rosalie na rapariga, mas sentiu o laço do parentesco bem fundo no
seu coração. Ela era a sua família. E ele nunca lho poderia dizer. Tal como
nunca o pudera revelar ao pai ou ao avô dela.
Gallagher trocara a sua alma pela vingança e, depois, fora obrigado a
retirar-se para as sombras e a entregar o cuidado da sua família a estranhos.
Mas, pelo menos, o Conselho dos Escudeiros tinha estado presente. Depois
de Gallagher se ter tornado um Predador da Noite, eles enviaram pessoas
para garantir que a sua família sobrevivia. O governo tinha tirado tudo a
Rosalie. Coni scara, até, os seus bens legítimos e deixara-a sem nada. Os
Escudeiros deram-lhe um emprego e, passados alguns anos, começaram
a enviar pretendentes adequados para cortejarem a sua mulher e um deles
acabou por casar com ela. Enquanto foi vivo, Harris enviou a Gallagher
fotos actualizadas e notícias sobre o seu i lho e netos. O Conselho dos Escudeiros tinha garantido a segurança e o bem-estar da sua família enquanto
ele continuava com o seu trabalho, caçar e matar daemon.
Ash avisara-o de como seria difícil. “Enquanto tiveres descendentes directos ainda vivos, assombrar-te-ão. Mas vai-se tornando mais fácil… com 14 
o tempo.” Outros Predadores tinham-lhe dito a mesma coisa mas, naquele
momento, com a bisneta à sua frente, não conseguia acreditar que assim
fosse. Deus, era tão injusto! Ou talvez esta fosse a sua forma de expiar a vida
violenta que tinha escolhido. Sempre no exterior. Estando no mundo, mas
nunca lhe pertencendo verdadeiramente. Semicerrou os olhos perante a
verdade. Cansado e magoado, pediu desculpa às raparigas e saiu do hospital.
Lá fora, a rua estava praticamente vazia. A hora tardia levara todos para
casa, em busca de calor; conforto. Duvidava que alguma vez voltasse a sentir qualquer uma dessas coisas. Quando entrou na garagem particular que
i cava do lado oposto da rua, em frente do Santuário, Elizar Peltier saiu pela
porta dos fundos e parou. O cabelo louro, encaracolado e comprido do homem estava puxado para trás, para longe do rosto. Usava um par de calças
de sarja e uma larga camisola preta.
— Jamie Gallagher — disse ele, lentamente. — Diabos me levem! —
Voltou-se e gritou através da porta aberta. — Kyle, vai dizer à Mamã que
prepare um prato de carne de conserva e couve. Temos aqui um Predador
da Noite a precisar de comida.
Gallagher acenou em agradecimento.
— Olá, Zar, já lá vai algum tempo.
— Acho que passaram uns trinta anos, ou assim, desde a última vez que
tivemos o prazer da tua companhia.
O tempo era realmente fugaz para um imortal.
— Contudo, ainda te lembras da minha comida favorita.
Zar encolheu os ombros.
— Nunca me esqueço de um amigo.
O mesmo se passava com Gallagher. Eram muito poucos e só os encontrava de tempos a tempos. Zar conduziu-o ao edifício ao lado do bar Santu-
ário. Construída no virar do século a residência Peltier era o lar da família
Katagaria e do seu grupo ecléctico de refugiados. A casa estava ligada ao bar
através de uma porta, no andar térreo, que se encontrava sempre guardada
por um dos onze i lhos Peltier. Eram lendários no mundo dos Predadores,
porque recebiam todos como amigos: Predadores do Homem, Predadores
de Sonhos, Predadores da Noite ou outros. Não interessava. Desde que se
mantivessem as boas maneiras e as armas escondidas, deixavam que entrassem e saíssem em paz. Os que violavam a única regra da casa, “Não derramar sangue”, depressa eram expulsos, feitos em bocadinhos. A elegante
mansão vitoriana estava agora sossegada, com excepção dos Uivadores que
tocavam no palco ao lado do bar. Estava mobilada com antiguidades do virar do século, que já se encontravam naquela casa desde que eram novas. O 15 
clã dos ursos não gostava de mudanças. Gallagher estava contente por isso.
Era uma sensação estranhamente semelhante à de regressar a casa.
— Quanto tempo vais i car? — perguntou Zar enquanto o encaminhava ao longo das escadas de mogno trabalhado à mão.
— Até ao Ano Novo.
Zar acenou.
— A Mamã vai i car contente por ouvir isso.
Indicou a Gallagher uma porta no fundo do corredor. Gallagher entrou e descobriu um quarto quente e acolhedor. As janelas tinham portadas
compactas e cortinas pesadas que impediam que a luz do sol entrasse.
— Tens aqui um cabo de modem para o teu portátil, caso o tenhas trazido.
O canto da boca de Gallagher ergueu-se.
— Todos os confortos de um lar.
— Tentamos. Lembro-me bem dos tempos em que tínhamos de fugir
e de nos esconder, sem nunca gozar de qualquer conforto. Gasta alguns
minutos a instalar-te e junta-te a nós quando estiveres pronto.
Gallagher viu Zar sair, enquanto era atravessado por sentimentos e memórias. Agradecia a cortesia dos ursos, mas trocaria todo o seu dinheiro e a
imortalidade por uma única noite passada com a sua mulher e o seu i lho.
Um único Natal com eles, vendo o rosto de Rosalie iluminar-se ao abrir um
presente. A dor da sua perda atormentava-o. Não queria sentir dor, nem desejar coisas que já não podia alcançar. Sentou-se na cama e olhou i xamente
para a parede. Viu o rosto da sua bisneta e perguntou-se se ela iria a casa no
Natal, para estar com a família.
Quanto a isso, perguntou-se se não deveria, também ele, ir para casa.
Pelo menos Chicago era-lhe familiar. Cansado e magoado, deitou-se na
cama para descansar por um segundo. Desejava apenas refugiar-se, por um
instante, nas memórias do tempo em que era humano.
Quando Gallagher acordou, descobriu que tinham passado três dias, enquanto dormia. Não se recordava de nada em relação aos seus sonhos.
— Porque me deixou dormir durante tanto tempo? — perguntou à
Mamã Peltier quando, deixando o quarto, a encontrou na sala de estar do
andar térreo. Na sua forma humana, era uma mulher elegante, alta e loura,
que usava, normalmente, um fato de bom corte. Embora não aparentasse
ter mais de quarenta anos, a verdade é que estava perto dos oitocentos.
— O Acheron disse que precisavas de descansar e eu concordei.
— Mas três dias?
Ela encolheu os ombros.
— Sentes-te melhor?16 
Estranhamente, sentia. Pelo menos i sicamente.
Passava pouco do anoitecer e era véspera de Natal. O clã dos ursos enchia, lentamente, o andar térreo e reunia-se nas duas salas de estar principais, onde se encontravam dois pinheiros de três metros e meio. Gallagher
afastou-se, observando todos os Katagaria e Arcadianos, que faziam da residência Peltier a sua casa, reunirem-se para a celebração que se aproximava. As pequenas crias de urso trepavam por cima dos presentes e tentavam
comer e subir pelas árvores, enquanto os seus pais e mães, em forma humana para que Gallagher se sentisse mais em casa, as puxavam para trás. Justin
Portakalian desceu, na sua forma de pantera, e pegou numa das crias mais
pequenas pelo cachaço, fazendo-a depois rebolar alegremente pelo chão.
Era a reunião de Natal mais bizarra que Gallagher alguma vez tinha visto
nos seus cento e tal anos de vida. Sentia-se ainda mais desajustado do que
se tinha sentido três dias antes, ao chegar.
Enquanto membros dos Uivadores chegavam para se juntar à festa,
Gallagher decidiu que precisava de apanhar ar e de gozar de um momento
de silêncio para organizar as ideias.
Saiu para a noite escura e fria e começou a andar, sem rumo, pelo Bairro
Francês. Sem que se apercebesse, chegou à porta da Catedral de St. Louis. Já passara muito tempo desde que entrara numa igreja pela última vez.
Apenas algumas pessoas se dirigiam para o seu interior. A maior parte dos
paroquianos esperaria, sem dúvida, pela Missa do Galo. Pensou em partir
mas, em vez disso, deu por si a dirigir-se para o interior, com os outros. O
foyer estava escuro, mas os olhos do Predador da Noite viam claramente o
interior e ele avançou na direcção da pequena bacia de água benta na parede à sua esquerda, mesmo ao lado da loja da igreja. Benzeu-se e, depois,
abriu as escuras portas de madeira que davam acesso à catedral. A beleza
dos vitrais e do santuário transportaram-no de imediato para os dias da
sua juventude. Gallagher ajoelhou-se, depois sentou-se na última i la. Ali,
podia sentir a sua Rosalie. Devota, nunca perdera um Dia de Preceito ou
Dias Santos. Acompanhara-a sempre, respeitosamente, embora se queixasse e resmungasse. Sempre paciente, ela sentava-se ao seu lado, dando-lhe
palmadinhas no braço e sorrindo para si mesma por o ter levado a fazer o
impossível.
— Sinto saudades tuas, Rose — sussurrou, o peito apertado com a dor
da sua perda.
Queria i car ali, onde sentia a sua presença, mas não podia. Nenhum
Predador da Noite conseguia i car muito tempo numa igreja antiga, sem
que os fantasmas do passado surgissem para o possuir. E ele estava, naquele
momento, demasiado fraco para lutar contra eles. Levantando-se, regressou em silêncio à bacia da água benta e, depois, à rua.17 
Estava frio no exterior, mas nem de perto tão frio como se sentia por
dentro. Gallagher começou a descer Chartres Street. Não sabia para onde
ir. Não lhe apetecia regressar ao Santuário e não havia real necessidade de
sair para caçar na Véspera de Natal. Como a maior parte dos humanos se
encontrava em casa com as suas famílias, os daemon tendiam a i car também em casa.
— Olá!
Gallagher parou ao ouvir a familiar voz cantada. Voltando-se descobriu
Simi atrás de si.
— Olá — disse ele, quase esperando ver Ash com ela. Mas, aparentemente, ela estava sozinha.
Simi saltou na sua direcção.
— Que ‘tás a fazer aqui fora, sozinho? — perguntou ela. — Esquecestete do caminho para o Santuário?
— Não. Queria i car sozinho durante um bocado.
Ela inclinou a cabeça e franziu o sobrolho.
— Porquê? Os ursos foram maus contigo? A Mamã i ca um pouco rabugenta quando eu brinco com as crias. Pensa que vou comer uma delas,
mas blah! São demasiado peludas. Agora, se ela me esfolasse uma, aí poderia i car interessada.
Ele riu contra a sua vontade.
— Estás a brincar?
— Oh, não! Nunca brinco em relação a comida peluda. É nojenta. —
Ela ergueu os olhos, i tando-o. — Se eles não foram maus para ti, então
porque saíste?
— Não sei. Acho que não me sentia bem ali.
— Porquê?
Ele encolheu os ombros.
— O que é que estás a fazer aqui fora?
— Nada de especial. O Akri saiu com aquele demónio de cabelo vermelho, por isso disse que eu podia ir brincar, desde que não comesse nada
que não tivesse sido cozinhado por um humano. Mas todos os meus locais
favoritos estão fechados, por isso pensei em ir ter com os ursos e ver se o
José, já que é humano, me cozinhava qualquer coisa boa que não i zesse
com que o Akri se zangasse comigo se eu a comesse.
— O Akri é o Ash?
— Sim.
— E o demónio de cabelo vermelho?
— Ártemis, a deusa cadela. Tu conhece-la. Foi ela que te roubou a alma.
— Ela não a roubou.
Simi soprou-lhe uma framboesa.18 
— Claro que roubou. Ela rouba tudo.
Ergueu-se em bicos de pés e olhou-o directamente nos olhos.
— Hei — disse, pegando-lhe no queixo com a mão, para poder virar
a cabeça dele de um lado para o outro enquanto o examinava. — Estás
magoado aí dentro. Isso deixaria o Akri muito triste. Ele não gosta que os
seus Predadores da Noite se magoem e a Simi não gosta quando o Akri está
triste. Porque estás magoado?
— Tenho saudades da minha família.
Soltando-o, ela acenou compreensivamente.
— Também tenho saudades da minha. A minha mamã era uma pessoa
boa. “Simi”, dizia ela, “eu amo-te”. O Akri também me ama.
Ela baixou a cabeça para que ele pudesse ver os seus chifres, cobertos
pelo que parecia serem gorros muito pequenos.
— Vês, o Akri até me deu estes abafadores de chifres para que os meus
chifres não arrefeçam. Também queres uns abafadores de chifres?
Esta era, decerto, a conversa mais estranha da sua vida. Não sabia porque continuava ali, a falar com ela. Talvez fossem os seus modos infantis.
Havia nela algo de muito encantador.
— Não tenho chifres.
— Queres uns? — perguntou ela esperançosa. — Podia dar-te uns todos coloridos. O Akri tem uns pretos, mas não deixa que as outras pessoas
os vejam.
— O Ash tem chifres?
— Oh, céus, tem. São muito bonitos. Não tão bonitos como os meus,
mas ainda assim muito simpáticos. A Simi diria que gostava que os pudesses ver um dia mas, se isso alguma vez acontecesse, serias morto e acho que
a Simi teria saudades tuas. Também pareces muito simpático.
Gallagher franziu o sobrolho enquanto ela vasculhava a sua bolsa de
contas, demasiado grande. Passados alguns segundos, retirou do seu interior uma pega de cozinha em forma de peixe. Entregou-lha.
— É de boa qualidade. Da QVC. Não há melhor. Vês a QVC?
— Não.
— Bem, devias. O Akri diz que vejo demasiado, mas nunca se queixa
quando compro as coisas que eles anunciam. Eles gostam muito de mim.
Põem-me na televisão e chamam-me Miss Simi. Gosto disso.
Ele devolveu-lhe o peixe.
— Oh, não! É para ti. Os presentes fazem as pessoas felizes. A Simi quer
que sejas feliz.
Oh, sim! Este era, sem dúvida, o momento mais estranho da sua vida.
Tanto mortal como imortal.
— Obrigado, Simi.19 
Ela afastou as palavras dele com um aceno.
— Não precisas de me agradecer. Vês, é isso que fazem as famílias. Tomam conta uns dos outros.
Sentiu o estômago apertar-se ao ouvir as palavras dela.
— Já não tenho família. Tive de abdicar deles.
Ela olhou para ele com curiosidade.
— Claro que tens uma família. Todos têm família. Eu sou a tua família.
O Akri é a tua família. Até aquela deusa velha e malcheirosa é a tua família.
É aquela tia horrorosa que aparece sempre, mas de quem ninguém gosta e,
por isso, gozam com ela quando não está.
Ele voltou a rir.
— Ela sabe que tu dizes essas coisas sobre ela?
— Claro. Digo-lhas na cara muitas vezes. Foi por isso que o Akri me
disse para ir brincar enquanto estava com ela. Não gosta quando nós lutamos. — Tomou a mão dele na sua. — Ouve, eu conto-te o que o Akri me
disse uma vez. Temos três tipos de família. Aqueles de quem nascemos,
aqueles que nascem de nós e aqueles que deixamos entrar nos nossos corações. Eu deixei-te entrar no meu coração, por isso a Simi é a tua família e
ela não abdicará de ti. Se agora estás triste, acho que é porque a tua família
ainda está, também, no teu coração e estão a ocupar tanto espaço que não
cabe lá mais ninguém.
— Não posso abdicar deles.
— E não deves fazê-lo. Nunca. Ninguém deve esquecer aqueles que
ama, nunca. Mas é como com a QVC: sempre que eu encho o meu quarto com coisas a mais, o Akri constrói-me outro quarto. De alguma forma
há sempre espaço para mais. O teu coração pode sempre expandir-se para
acolher tantas pessoas quantas seja necessário. As pessoas que lá vivem, essas não se vão embora. Só tens de arranjar espaço para mais uma pessoa, e
depois outra, e outra, e outra.
De braço dado, Simi conduzia-o pela rua abaixo.
— Não queres que a Simi seja a tua família?
Pensou nas palavras dela e na sua estranha analogia. Ela inclinou-se
para a frente e sussurrou.
— Esta é a parte em que dizes: “Sim, Simi, gostava de ser a tua família”.
Porque se assim não for, vou ter de reclamar a pega de volta e assar-te nas
brasas. O Akri ainda está chateado por causa do último Predador da Noite
que assei nas brasas e isso já foi… oh, há uns mil anos ou assim. Ele é parte
elefante quando se trata de lembrar das coisas. Por isso, diz-me: queres que
a Simi seja a tua família?
Ele sorriu contra a sua vontade.
— Sim, Simi, gostava de ser a tua família.20 
Ela resplandeceu.
— Ainda bem. És um Predador da Noite muito esperto.
Antes que Gallagher disso se apercebesse, Simi guiara-o de volta ao
Santuário. Abriu a porta e afastou-se, esperando que ele entrasse. O ruído
anterior não era nada, comparado com o que se ouvia agora. Havia quatro
falcões alinhados sobre um varão de cortinado, a dançar ao som de animadas músicas de Natal. Os Uivadores (todos em forma humana), cantavam
enquanto Dev Peltier tocava piano. Um tigre branco estava deitado de costas, no sofá, enquanto Marvin, o macaco saltava, para cima e para baixo, na
sua barriga. Um grande urso preto, que assumiu ser Aimee Peltier, estava
a dar sandes de manteiga de amendoim a duas crias bebés. Uma humana
ruiva, com uma cicatriz na cara, aproximou-se deles e prendeu Simi num
abraço.
— Olá, demoniozinho, onde está o patrão?
Simi encolheu os ombros.
— Foi cuidar da Senhora Dona Rainha Chata. Tu como estás, Tabitha?
A tua irmã e o Kyrian não vêm?
— Não, virão amanhã. A Amanda teve uma crise de enjoos matinais
quando estavam para sair mas o Talon disse que viria, assim que pudesse.
As duas afastaram-se para o meio da multidão. Gallagher recuou, observando a festa.
Estavam ali Arcadianos, Katagaria, Predadores da Noite, demónios e
sabe-se lá mais o quê. A razão dizia que eles não deviam dar-se bem, contudo estavam juntos naquela noite. Ligados por algo mais do que o sangue.
Estavam ligados pelo coração.
Colt aproximou-se dele. Um Sentinela Arcadiano, tecnicamente, o seu
trabalho era caçar e matar Katagaria. Mas, anos antes, os Peltier tinham
salvo e protegido a mãe de Colt e, depois da morte desta, tinham-no criado.
Ele era tão leal ao clã dos ursos como qualquer um dos seus i lhos naturais.
Sorrindo, retirou uma pega em forma de ananás do bolso das calças.
— Gallagher, deves estar muito bem cotado. Tiveste direito a um dos
peixes bons. Eu só mereci uma porcaria de um ananás.
— O quê? Todas as pessoas que ela conhece recebem uma?
— Não. Só a família.
Gallagher olhou à sua volta e viu algo em que não tinha reparado antes.
Todos os que ali estavam tinham uma pega.

Fim

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