sexta-feira, novembro 09, 2012

As Trevas da Paixão - Sebastião #4

Sabem quando acordamos com a esperança que aquele mau pressentimento tivesse desaparecido e damos connosco a constatar que afinal durante as horas de sono, se intensificou ainda mais? Pois, foi exactamente isso que me aconteceu. Pensei acordar envolvida nos braços de Sebastião, com a erecção dele sempre pronta para mim, a esbarrar-me as nádegas, mas não, a única coisa que encontrei foi a mesma cama vazia de quando me deitei e um enorme sobressalto no coração quando constatei que ele ainda não tinha chegado sequer.

Verifiquei o telemóvel e nada. Nem uma mensagem, um aviso, um maldito kolmy. Nada.
                Tentei não me pôr a pensar asneiras sobre isto ou aquilo, afinal de contas um evento daquela envergadura podia muito bem ter durado até de manhã e ele ter bebido uns copos a mais e ter optado por ficar no hotel em vez de regressar a casa atrás do volante. Era isso. De certeza que tinha sido isso.
                Enquanto a máquina do café aquecia, vesti-me e maquilhei-me rapidamente. Prendi o cabelo num rabo-de-cavalo e peguei na bolsa. Comi uma torrada e bebi um pouco de café com leite. Costumava comer e beber mais, mais tinha ainda a nuvem de enxaqueca a pairar sobre mim, pelo que o sentimento de náuseas não me deixou comer como devia. Era isso, ou então eram as constantes incertezas das não notícias de Sebastião que me estavam a deixar doente.

              Os restos do mega evento do hotel “Estrela do Horizonte” eram visíveis da estrada de acesso. Carros e carros, amontoados no parque de estacionamento. Toneladas de sacos pretos, contendo lixo, amontoavam-se nas traseiras à espera que os serviços camarários viessem recolher os restos. E assim que estacionei o carro, no aparcamento específico para os funcionários, vi Sebastião a dirigir-se ao seu próprio carro. E agora?
                Não esperei pela resposta que ninguém me ia devolver. Saltei para fora do carro e como uma tolinha, corri na direcção sele, chamando-o. Sebastião voltou-se, um pouco aturdido pela minha voz um bocado estridente demais para aquelas horas da manhã, onde os raios de sol mal se viam.
                - Ei… Bom dia! – disse ele quase num murmúrio, levando os dedos longos e habilidosos às fontes. Sim, o meu grito deve tê-lo incomodado e esse aspecto veio consular o meu ego como os braços de uma mãe quando embala o seu bebé.
                - Então, como correu o evento? Oh, espera. A julgar pelas horas, deve ter sido um sucesso. – disse sem conseguir conter os meus ciúmes e paranóias. A minha cabeça pulsava cada vez mais de força. Sentia o sangue a correr dentro das minhas próprias veias, mas consegui esboçar um sorriso profissional digno de um Óscar[1].
                Sebastião observou-me durante uns segundos, tentando ver através dos meus olhos, quão furiosa estava com ele. Sabia que se ele me conhece-se bem, saberia ver que apesar do sorriso rasgado e falso interesse, estava preocupada com a nossa relação e magoada com ele por não me ter dito nada a noite toda.
                - Oh bebé, então? – ele aproximou-se e abraçou-me. Beijou-me o cimo da cabeça e deu-me um breve beijo nos lábios.
                Momento esse, que devo confessar, aproveitei para ver se existiam marcas de batom nos colarinhos da camisa, ou mesmo na pele. Aspirei profundamente mas ele apenas cheirava a Sebastião e a fumo. A minha parte romântica deu saltinhos de alegria chamando-me nomes por querer ver coisas onde não existiam. Por outro lado, o meu lado racional e inteligente alertava-me com um placar sonoro e luminoso que o pior estava para vir. Faltava-me agora decidir a qual das partes devia dar ouvidos.
                E o que é que uma mulher faz quando está apaixonada? Deixa-se ir.
                - Senti saudades tuas… a minha cama não é a mesma quando tu não estás… - disse, ainda encostada aos lábios quentes dele. Sim, eu sei, foi uma declaração pirosa, mas que se pode fazer? O amor deixa-nos assim, pirosos. Afastei-me do perigo que era a boca dele e observei-o - Então, correu bem ou mal?
                - Bem? Melhor não podia ter corrido. – disse ele com uma satisfação invejável. Uma confiança digna de reis.
No entanto o meu lado racional pisou-me o pé em alerta, ali o menino estava a falar de dois assuntos ao mesmo tempo. Conseguia sentir o subterfúgio daquela frase…
Sebastião bocejou, e desculpou-se, interrompendo o bocejo com a mão, acariciando-me depois o rosto. Pousou os olhos no relógio e franziu a testa.
              - Não entras às 6h? – mostrou-me o relógio – Já estás atrasada e eu também. A noite foi longa e eu preciso de dormir.
Sebastião beijou-me no momento que eu me preparava para lhe pedir mais pormenores sobre a noite. Mas para além do bocejo dele tinha também o meu horário de trabalho para cumprir e não queria boatos do tipo: «Chefe de recepção chega atrasada porque esteve a namorar com o R.P. no parque de estacionamento do hotel onde ambos trabalham.»
- Está bem, mas depois quero saber os pormenores todos! – disse, roubando-lhe um beijo, ficando a vê-lo entrar no imponente mercedes e posteriormente sair do hotel.


[1] É um prémio entregue anualmente pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Sabem quando chegamos ao nosso local de trabalho e nos salta a tampa, porque quem devia ter feito o serviço não o fez? Porque segundo se lembrava, os seus queridos superiores não queriam “falhas” e por isso contrataram uma equipa especializada para que tudo corresse bem na organização do maldito evento? Pois bem, então agora, enquanto observava a confusão em que tinham transformado o guiché da recepção, dei comigo a pensar na forma mais correta e educada de os mandar chamar a dita equipa para voltar a organizar aquilo. Sinceramente apetecia-me virar costas àquela porcaria toda e ir para casa. Meter baixa médica. Inventar um funeral… Quer dizer, nem precisava de inventar, Emma tinha falecido e era estrangeira, podia muito bem ir ao funeral da desconhecida numa atitude de penetra e Diana arranjava-me sem respirar, uma declaração para entregar nos recursos humanos.
Felizmente ou infelizmente sempre fui muito profissional, reuni as tropas, arregaçamos as mangas e tratamos de organizar os cartões dos quartos, as folhas dos check in/ out. Fazer as contas do caixa da recepção e dos bares e passar todos os valores à contabilidade. Mas de uma coisa podem ter certeza, na próxima reunião de pessoal eu ia soltar os cães, ou não me chamava Eloísa.
Infelizmente o meu stress estava apenas e só a começar. Depois de termos arrumado a recepção de uma ponta a outra, depois de termos entregue as contas ao departamento de contabilidade que viu de imediato – assim como eu – que as contas não batiam certo, e de ter começado a receber os primeiros clientes da manhã, eis que o meu verdadeiro pesadelo começa.
As minhas fontes latejaram com tanta força que pensei que um aneurisma se tinha rebentado dentro da minha cabeça. A guinada tinha sindo tão intensa que perdi a visão por momentos. Equilibrei-me no balcão e uma das minhas miúdas, Isabel, foi-me buscar um copo de água.
Já repararam numa coisa, para nós portugueses, um copo de água é quase um milagre! Estamos enjoadas: bebe um copo de água que isso passa. Estamos com dores de cabeça: bebe um copo de água que isso passa. Estamos furiosos: bebe um copo de água que isso passa…
Estava já com o copo de água na mão, e com uma Isabel muito preocupada a observar-me atentamente, enquanto os músculos da minha garganta obrigavam a água a descer pelo esófago em direcção ao estômago, quando o nosso conhecido colega, Roberto, nos entrou pela recepção dentro, puxando o seu carrinho de entregas, contento as habituais revistas e jornais diários que dispúnhamos nas salas comuns, onde os nossos hospedes podiam sentar e porem-se a par das mais recentes noticias. E claro, depois do evento da noite passada, as revistas da alta sociedade não falariam certamente de outra coisa.
Isabel, esperta e pronta, como sempre, tomou conta da recepção das revistas e jornais, enquanto eu procurava dentro da minha mala a caixa das aspirinas. Pelos vistos as enxaquecas estavam de volta e antes que elas se lembrassem de me rebentar logo pela manhã, tinha que reforçar a dose. Quando regressei ao balcão principal já Roberto se tinha ido embora, deixando-me as melhoras.
Aproximei-me de Isabel, que separava as revistas da alta sociedade dos jornais diários para dar uma vista de olhos às primeiras impressões sobre o evento, quando um hóspede aos gritos, rompeu o átrio da recepção, gesticulando freneticamente na nossa direcção, mas falando o seu inglês tão serrado que nem eu nem Isabel conseguimos perceber o porquê de tanto alarido. Não cheirava a fumo, logo o hotel não devia estar a arder.
- Querida, não te importas de dispor as revistas nas salas por mim? – disse, com um pé fora do balcão – É melhor ver o que Mr. James necessita, antes que tenhamos a armada inglesa em peso não tarda nada.
Isabel riu-se da minha careta e apressou-se no seu trabalho de separação e dispersão dos respectivos jornais. Eu, pobre de mim, tive que lidar com a minha maldita dor de cabeça e com o escândalo exagerado de Mr. James, tudo, porque lhe tinham servido «Green Tea» em vez de «Grey Tea». A sério, eu devia receber um prémio, não só por ser a funcionária do ano, como por ter a capacidade de lidar com ingleses manientos e snobs[1]que não conseguem reconhecer um engano, esquecendo-se certamente que eles também são humanos… Bom, enfim. Sou a super mulher, que posso fazer?
 


[1] Pessoas que se acham superiores. Normalmente possuem títulos académicos.

 

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